terça-feira, 8 de novembro de 2016

Um Tropeço, um Xico e uma moleca

Atualmente pouquíssimas - e nem sei dizer se posso nomear de: triviais coisas, pelo afeto que existe nas tais coisas -, mas, como ia revelando; pouquíssimas e bobinhas - uma forma mais adocicada de não desvalorizar as ditas coisas -, tem me dado de fato uma certa alegria sem pesos. Apenas alegria por alegria, pelo simples fato de existir e estar ali, naquele momento, naquela luz, com aquela trilha de fundo - Gregory and the Hawk, atualmente, sempre! pela fofura, pela suavidade da voz, pela leveza de me fazer saltar da amargura incrustada para uma nuvem de algodão doce-. Tropeço, o gato, é totalmente responsável por alguns dos muitos momentos de alegria diária. Ele sabe o quão abusada sou na minha pequenez forma de menina fofa e bem humorada. Ele, com apenas 4 meses de convivência sabe que sou terrível com humanos, não sei manter contato e muito menos demonstrar meus afetos mais saltitantes e coloridos. Tá, não é só por me sentir acolhida por Tropeço, mas também pelo fato de poder amar um ser vivo que não me cobra absolutamente nada - só ração, mas também, né… quem mandou prender ele o dia todo?! -, é um amor bem de levinho, sem essas preocupações diárias de: “ahmeudeusdocéu, será que eu dei boa noite?”, “esqueci de dar bom dia, será que a pessoinha vai chiar por isso e achar que sigo a moda do desinteresse?”. Mana, que cansêra dessa coisa toda!


Como ia dizendo, Tropeço tem me deixado alegre na minha tristeza cotidiana, tem me mordido na hora certa e me dado carinho com suas fofas patinhas e com seu molhado focinho altas e tantas da madrugada, que é quando acordo de algum pesadelo, ou pela simples falta de sono. Agora, além do Tropeço, o Xico - gato preto da rua, morador do meu coração, mas sem teto e sem dona -, tem muito me visitado. Ele chega nas horas mais absurdas dos meus inseguros pensamentos, olha pra mim com aqueles dois olhinhos de vidro amarelo, esconde a língua e fica a cara daqueles desenhos altamente perfeitos da disney e etc. Uma fofura de gato! Outro que soube estabelecer uma relação de amor sem muito grude e cobranças. Ele só aparece, me faz sorrir, come e vai embora. Algumas vezes grita escandalosamente em minha janela e em outras entra e sai que eu nem vejo.
Gato, gato, gato, gatos… só fala em gato agora? Tem também as crianças, ou mais especificamente: a criança! Fui jogada, isso mesmo jo-ga-da, para uma turma de crianças muito crianças (3-4 anos) sem a mínima experiência, o que me matou profundamente e me fez cair em um plano de inutilidade e insegurança sem fim. Mas passou. Passou por causa dessa dita criança; um moleca astuta, de três anos de idade, negra!, de olhos e sorriso inspiradores, atrevida e cheia dos eu-sei-o-que-eu-to-fazendo. Confesso, a moleca tem amolecido meu coração para as questões futuras de uma possível solo maternidade.
Esses potinhos de alegria tem me feito viver, criar mais braços e pernas para continuar.
Obrigada ao universo e a todas/os que estão por mim em algum plano por aí.


Eu penso demasiadamente e quase nunca quero compartilhar esses pensamentos. Ainda não sei se, por um breve lapso de medo das reações mais adversas do público, ou, por estar enfadada o suficiente dessa sociedade geradora de amarras imbecis. 
Vivemos um momento estranho na história - digo isso do lugar de fala de quem se diz de esquerda, já que agora somos todas obrigadas a nos identificarmos como prisioneiras sem direito a julgamentos ou defesas -, uma onda conservadora e violenta atacou o nosso país sorrateiramente e nós - agora como um todo -, gostamos de aplaudir e transformar nossas misérias em vísceras glamourosas expostas em um cinema de péssima qualidade nomeado de globochanchada, ou até mesmo em piadas internas expostas nas redes da carência e do vazio. Argh! Como e quando nos tornamos tão inúteis? Ainda não consigo identificar - agora como apenas uma individua em sua insignificante casca -, se somos culpadas por essa vergonhosa reação, ou se, no decorrer do processo de redemocratização e emancipação política venderam-se ao american dream de corpo, alma, boceta e cú, que como todo bom vendedor prometeu toda a liberdade e igualdade que uma democracia pode oferecer, tudo parcelado em 12 vezes, à preferência brasileira.
Um bom caçador sempre sabe onde pisar e quando armar uma boa arapuca. Eis um fato: os conservadores não são idiotas, apesar dos seus ideais serem enormes valas de puro excremento suíno. Eles são bons caçadores e nos abocanhou de vez, quem pode se safar correndo para países vizinhos - que não estão lá as mil maravilhas -, se deu muito bem, por enquanto, quem ainda insiste em dar murro em ponta de faca e morrer a cada dia mais um pouco, como eu, persevera esperançosa em uma onda juvenil sedenta por reformas. 
O pessimismo é desencorajador e mau humorado, ele me tem em suas mãos de uma forma incrível, vez ou outra escapo por entre seus dedos e consigo me articular desorganizando espaços e sólidas estruturas, são pequenos movimentos, confesso. Me obrigo a acreditar na teoria dos dez - se você atingir dez pessoas, essas dez vão atingir mais dez e assim por diante -, que vi naquele filme The Edukators, juvenis anarquistas e insanos, uma combinação perfeita para preencher meu vazio de sonhos fugazes.
Viver os sete dias nessa realidade suja, sofrendo com os tiros do governo, da mídia mor do país e da bancada evangélica tem me dado imensas dores estomacais. Assim como tem me sugado de forma terrivelmente assustadora. Por vezes me sinto um inútil mosquito com as asas cobertas de excrementos, em outros momentos me sinto como um forte e robusto búfalo; selvagem e animalesco o suficiente para pisotear todos esses “homens de bem”. 
Hoje sou um mosquito, e peço humildemente desculpas à sociedade, mas eu preciso morrer um dia para devorar os outros seis.

quarta-feira, 2 de novembro de 2016

Os meses são todos iguais

Em novembro as coisas são sempre iguais e em Sousa é o ano todo assim. O rapaz do falso sorvete italiano está sempre no meio da calçada da praça, bem em frente ao coreto, onde os meninos do rock escutam sempre os clássicos do SOAD e Metallica, que são muito bons, inclusive. Todos sempre estragando seus juvenis corpos com álcool e outras substâncias facilmente e figuradamente encontradas no filme Trainspotting, o que também é muito bom e te faz viajar loucamente por seus mais profundos desejos e temores. Mas, os excessos destroem muita coisa, não só essa podre carcaça que nos abraça e nos camufla dia e noite.
Dona Rosália está sempre ao lado esquerdo da praça, com sua pequena e confortável barraquinha de crepes, também, sempre acompanhada do seu filho Eduardo, que tentou vida na cidade grande mas teve todos os sonhos triturados pelo bicho homem criador do capitalismo selvagem para com os negros nordestinos, ao lado de ambos está Maria Eduarda, menina de olho ligeiro e cabelo escorrido. Sempre a vejo acompanhando a Avó nestes duros percussos que ela faz em busca das latinhas para a reciclagem. A negra, pobre, sem escolaridade e velha, precisa se virar com o que sobra, é triste. Mas a vida sempre é triste. A vendedora de cigarros e cana por dose, fica do lado direto da praça, próxima dos espetinhos que vendem cerveja, alegria e etc. Pra mim, o lado direito é dos cachaceiros e o esquerdo da família politicamente correta, polidamente e higienizadamente feliz; branca e feliz. Eca! Os pula-pula estão sempre impecavelmente inflados com suas gigantescas bocas gritando: “venha a mim”, como em um desses filmes trash, que eu detesto. De lá gritos estridentes e felizes saltam com os pequenos bonequinhos de porcelana criados ao banho maria. É, as famílias sousenses são felizes, se não, as Avós o são, empurrando satisfeitas os carrinhos de vossos netinhos e netinhas, todas emperiquitadas em seus vestidinhos de tecido, corte reto e botões impecavelmente alinhavados no meio do corpo. Confesso que adoro as roupinhas das senhoras. Os meninos do rock dão um contraste fudido a tudo que ali se encontra e eu acho isso incrível, realmente é uma das coisas que me deixa satisfeita quando saio de casa em busca de um picolé de limão e sou obrigada a engolir a branca e falsa sociedade sousense. Mas, ao que me parece, de um jeito bem, ruim os meninos do rock foram aceitos e agora representam apenas uns bobos da corte para a elite. É notável o escárnio dos pais e mães quando param em frente ao coreto e cochicham para seus filhinhos fedidos; “eles são uns loucos drogados e satanistas”. Argh! O bicho homem quando se sente elite fede mais ainda. Algumas figuras solitárias também dividem o mesmo espaço desta praça, quase sempre imperceptíveis. Chegam, sentam em um banco qualquer, observam os meninos do rock, sentem o mormaço dos 38º do Sertão e balançam a cabeça em um gesto negativo para si mesmos. Reconheço o gesto e também a tal da solidão em 38º. 
A moça, tão observadora em sua saia plissada e floreada – presente de uma amiga querida –, entediada com a vida em quatro paredes, percebe que cresceu e Sousa... bem, Sousa sempre foi pequena. São 365 dias exatamente iguais, nada sai do local riscado, o escárnio dos mais ricos é sempre o mesmo, a resistência dos meninos do rock é sempre a mesma, o cansaço nos olhos de Dona Rosália é sempre o mesmo, e a dor de senti-la cansada é sempre a mesma.
Ela cresceu, mas continua fazendo o mesmo desde que notou seu crescimento. Senta sempre no mesmo lugar da escadaria – entre as duas torres, agora erguidas, como ela, da velha Matriz –, onde consegue enxergar sua igreja preferida – a dos Pretos, ou do Rosário, como preferem os brancos –, onde pode ser singelamente tocada pela lua, onde pode ouvir todos os singulares barulhos de um leque de vida que se abre em sua frente, chupa o seu picolé de limão, que é vendido a preço de pão do outro lado da rua, e respira sempre insatisfeita. 
Ela, espera algum acontecimento, mesmo que este seja trágico.

sexta-feira, 21 de outubro de 2016

Dia VI

Já tentou fumar um cigarro na chuva sem derrubar as cinzas? Ela se torna tão frágil quanto eu, os pingos parecem ácido corroendo a crosta que a cobre. O vento lambe o vazio com sua enorme e desrespeitosa língua. Levando finalmente ao chão a fina estrutura cinza, àquela, cuja qual tentei manter erguida com todo o equilíbrio polido que me coube na hora da repartição das defesas inefáveis. A brasa exposta é tão quente e vermelha quanto o sangue escapando de mais um corte profundo e interno. Pareço viver em uma cena de um daqueles filmes franceses sobre a solidão e a fragilidade do ser humano, gravados em uma dessas câmeras antigas, da qual nunca lembrarei de fato o nome correto. Apagaram-se as luzes da rua no último trago, sinto-me tão confortável do lado de fora, pois deixou de existir a doentia necessidade de cobrir-me ou enfiar-me em um desses vãos cheios de goteiras. Alguém acendeu as luzes, será um sinal do divino? Eles enxergaram minha bagunça, mas eu estava tão alta que ninguém se deu conta da desordem. Eu deveria não fumar e não esperar a exposição do meu avesso em busca de me sentir parte de algo do qual nunca farei parte. Essa infindável goma de pessoas enamoradas por sentimentos leves e fraternos. Eu deveria não dever nada a mim. Muito menos cobrar a dívida de querer ser o que não se é, dentro desse imenso aglutinamento de amores fictícios. Talvez todos os seres avessados internamente faça parte de um filme francês, dirigido por um desses loucos adoradores do caos. A importância de enxergar o interno através dos olhos da dor alheia abre uma imensa vala de sentimentos formidáveis. Eles são pequenos eletrochoques, acelera a pulsação e introjeta a ideia de que ainda estou viva, apesar da fina expressão de moribunda e da fraca respiração formarem uma bolha impenetrável. Estar de pé nunca significou estar viva. A morte caminha e nunca dorme; nunca senta e nunca descansa. Ela sonda. 

10 de abril de 2016

sexta-feira, 7 de outubro de 2016

Do peito floreado pós corte.

Podei o pé de cola,
cada galho, um laço
cada laço, um conto com ponto
cada ponto com sua devida necessidade de uso.

Podei o pé de cola,
solo agora ele está
porém, mais firme que uma rocha
preso ao chão com gana de viver.

Podei o pé de cola,
o deixei com apenas uma via
e por essa via ele há de crescer
agora, com a força 
de poder ser exatamente o que se é.

Podei o pé de cola
e meu peito floreou. 

O pé de cola da minha infância

Plantei um pé de cola na casa de Mamãe, quando era bem menina, um pouco sapeca, e, muito ligada aos bichos e plantas. Enquanto plantas existiam na casa de Mamãe, que já foi a casa de Tia Marlene e de Vovó, não me preocupava muito em plantar, mas sim em cuidar das que ali viviam. Por essa época me envolvia bem mais com os bichos. Uma vez Tia Marlene me deu uma franga, era linda a Dona cor sim-cor não! Até hoje não sei que fim levou minha franga pedrês. Diz Tia Marlene que ela fugiu, porque não apertei o nó como me mandaram. Nunca fui boa em apertar o nó para manter os bichos perto de mim, tampouco gente. Pois bem, que Tia Marlene me perdoe, mas eu acredito piamente que Dona cor sim-cor não foi direto do pé de Seriguela, onde era sua dormida, para a panela de ferro que ela havia comprado na feira da Estação e que era o pico daquele imenso tripé de panela, tripé esse que ainda está na esquina do lado esquerdo da cozinha de Mamãe. Depois desse episódio com a franguinha tentei cuidar de alguns cachorrinhos, mas Mamãe sempre os colocava para correr. Dizia que era mania besta essa de querer criar os cachorros do monturo, mas eu nada podia fazer se os bichinhos me chamavam de manhã bem cedinho antes de partir para o colégio. 
Passados alguns bons anos algumas coisas mudaram por estas redondezas. As plantas de Vovó e de Tia Marlene foram arrancadas do quintal e no lugar delas restou uma imensa vala que o próprio solo abriu, como quem queria falar da dor e do vazio de se tornar seco e improdutivo. Nunca gostei desse momento da vida, e ainda não gosto. Segundo Mamãe, o corte fatal foi necessário. Já havia saído de casa fazia algum tempo, poucos dois anos, se bem me recordo. De lá para cá, sempre que venho na casa de Mamãe sinto um imenso vazio, abrandado apenas por causa das gatas, que praticamente obriguei Mamãe de abrigar, e do pé de cola plantado em minha infância.
Esse dito pé de cola foi plantado por uma teimosia minha, ainda quando dividíamos a casa com minha Tia Marlene. Eu achava fantástica a ideia de ter um pé de cola em casa. Mamãe tentou de tudo para derrubar o danado. Cortou ele mais de dez vezes, colocou óleo queimado e o escambau, como a ensinaram. Mas nada, nada mesmo, fez com que ele morresse. Ela cortava ele, deixava ele só no tronco, limpo, seco e ferido. Mas com uns quinze dias lá estava ele cheio de novas galhas e folhas. Parecia que quanto mais Mamãe tentava cortar as galhas dele mais ele crescia todo desgrenhado. Ela dizia que o bicho era teimoso feito a dona que o plantou.
Mamãe desistiu. Deixou o pé de cola crescer, crescer e crescer. Hoje cheguei em Mamãe e lá estava ele, todo desgrenhado, galhas para todos os lados, todo espalhado e desengonçado. Não tinha um pingo de harmonia vindo dali. Olhei para ele um bom tempo e não pensei duas vezes, busquei um facão do vizinho, instrumento esse que nunca havia me atrevido em tentar usar, mas o usei. Olhei um bom tempo para o teimoso do pé de cola e vi que do seu tronco, já todo ferido e cheio de marcas dos duros cortes do passado, brotava uma infinidade de galhos, cada um caído para um lado diferente. O jeito foi me desfazer de todos e deixar apenas um. Fiquei de coração todo esmigalhado por estar cortando as galhas do meu pé de cola, mas sabe, a vida tem dessas. É necessário cortar todos os galhos ao nosso redor para que uma nova fase de crescimento chegue. É necessário cortar todas aquelas folhas novas que vão se confundir com as folhas de outras árvores. O corte é necessário para o crescimento. O pé de cola foi bem podado e agora respira apenas por uma via, a via do seu novo crescimento. Penso que Mamãe aceitou sem medo que quando uma árvore finca suas raízes na terra escolhida não existe corte que a faça morrer.
A resistência do meu pé de cola é antes de tudo a minha resistência. É a graça de saber a terra que se pertence e a força de querer ficar por lá, de ser aceita do jeitinho que se é. Cheia de ramificações e das manias de querer se atrepar em tudo e desbravar tantos outros caminhos e encontros.
O pé de cola da minha infância entrou em uma nova fase.

domingo, 28 de agosto de 2016

Os barulhos do sítio

Gosto de ouvir o barulho dos motores cessando. A luz laranja caindo sobre o teto da casa de mamãe, fazendo com que as copas das árvore brilhem e pareçam carregadas do pomo de ouro da doce Afrodite. Gosto de ouvir o piado dos pardais se aninhando nas árvores e o farfalhar das folhas quando o vento de Aracati sopra no Alto Sertão. Observo o cuidado das galinhas em juntar todos os seus sete pintinhos e levá-los até o antigo forno a lenha que Vovó usava. Gosto de olhar a fumaça do meu chá brincando contra a luz do sol que se põe no fim da rua de Vovó e de me balançar na rede de varanda azul, enquanto o mundo recolhe seus filhos. Gosto de ouvir os pais chegando do trabalho, dos seus suspiros de cansaço e do barulho da água do chuveiro que leva embora a sujeira da cidade. Gosto de sentir o cheiro do guizado das panelas alheias e de ouvir as vizinhas avisando que o arroz de Dona Dalila queimou por causa da fofoca dela com Dona Graça no pé do muro. Gosto de ouvir o motor da despolpadeira de seu Borges parando devagar e de sua alegria pela boa quantidade de arroz retirada na semana. Do barulho dos chocalhos das vacas de seu Bastião, do estalo do chicote no ar e do seu cantar de boiadeiro. Gosto de ouvir o chiado da vassoura de palha de Dona Mocinha juntando as folhas no terreiro e dos seus gritos por suas filhas, que adoram jogar bola no terreiro de Dona Nitinha, pois o terreiro de lá tem menos pedras e não machuca os pés. Gosto de ouvir o barulho do aro da Monark azul de meu avô e de sua gargalhada quando lhe peço um real. Gosto de ouvir o barulho da tesoura de Tia Marlene cortando tecido sobre a mesa de madeira e do barulho que sai da sua Singer junto com algum vestido de chita. Gosto de ouvir o arrastar dos chinelos de Mamãe e da sua cadeira de balanço sendo levada para o alpendre.
Gosto de ouvir a casa de Vovó e tudo que existe ao seu redor, assim me sinto mais próxima dela e do seu amor. 
Gosto de sexta-feira. Nela, tudo se acalma e tudo se recolhe. 

terça-feira, 16 de agosto de 2016

Hoje,
queria ser um pouco
do que ficou debaixo das tuas unhas
e mais um pouco das gotículas
que ficaram dependuradas em tua grossa barba.

Hoje,
queria ser um pouco de mim
que ficou espalhado em teu lençol,
o cheiro dos travesseiros
e a mancha de hidratante na barra da tua toalha.

Hoje,
queria ser o outro prato em tua mesa
o copo extra no braço do sofá,
a borra de batom nas bitucas de cigarro,
a segunda voz.

Hoje,
queria ser a pontinha da marca
que deixei em teu peito,
o sangue em teus lábios
e a ardência na pele riscada.

Hoje,
queria ser todos os poucos
espalhados de mim, em ti
e no fim da madrugada
materializar-me ao lado direito da tua cama
e sussurrar com os lábios semicerrados:
“dorme bem, baby”.

Amanhã,
queria amanhecer sendo o outro corpo,
ser um dos teus sorrisos
o segundo café
e ocupar um pouco destes espaços.

quinta-feira, 11 de agosto de 2016

Três horas da manhã,
a ponta do meu lápis bate
i n c a n ç a v e l m e n t e
sobre minha última folha.
Giro, levanto, tomo mais um café
Forte suave gelado quente
meus sentidos me traem.
Existe um vazio em mim
e em vários outros cômodos da casa.
Minha cabeça não desgruda
da causa dessa amargura
e meus olhos não largam teus traços.
Sofro laboriosamente.
Em imaginação
prendo-me aos teus pés
e sinto como se mil animais furiosos
desfiassem minha carne.
Teu amor é bruto
deixou marca em toda parte.
Meus sentidos me traem
meu corpo me trai
e se contraí quando sente a marca do teu.
Meu corpo pede cama
Deito, viro, reviro
Afundo-me nos travesseiros
e sinto a doce sangria
da água contida lavando meu peito.
Já é outro dia.
Agora, não mais peno por tua falta
me enlaço nas sobras dos meus pés
e sorrio lembrando-me dos dois rios
que são teus olhos.
Nada como o clichê
do velho tempo dependurado
na parede do calejado coração
para mostrar a sobra que me falta
do amor próprio.