quinta-feira, 26 de maio de 2016

Da vida em cheiros e silêncio

Aprendi a fumar com meus pais, mais com papai do que mesmo com mamãe. Na infância, longe das pequenas cidades, do contato humano e afundada no centro das grandes capitais, encontrava mamãe fumando escondida e muito pensativa. O silêncio alheio sempre me encantou. Mamãe nunca foi uma mulher com cheiro de cigarros, apesar de fumar quatro vezes ao dia no pequeno banheiro da nossa segunda casa. Adorava observar sua falha tentativa de esconder do esposo e da filha o vício que a libertava. Ela, trancava-se no banheiro e colocava para fora do vitrô sua mão direita com seu Hollywood de filtro vermelho. Observava de longe, do fundo do quintal – meu lugar preferido até hoje –, seu rosto cansado e aliviado. Era o único momento em que mamãe era mais do que o duro e solitário papel de ser uma boa esposa e mãe. O cigarro acabava e ela fechava o vitrô, abandonando assim sua desnutrida liberdade feita em cigarros e fumaça. Naquela época não entendia nada do que escrevo agora, mas gostava de ver mamãe como uma fina estrela solitária de Hollywood, que com ela conheci nos filmes de sessão da tarde. Papai fumava no trabalho devido meus problemas respiratórios, saía de casa muito cedo. Em sua bolsa carregava um guarda-chuva, cigarros, um casaco e seu almoço preparado com muito zelo por mamãe. Vestido em um macacão azul-escuro, com a barra da calça desgastada e manchada de tinta, papai vinha se despedir me carregando no colo do meu quarto para o quarto de mamãe. Eu fingia dormir, pois não queria ouvir vozes, queria apenas sentir o seu cheiro de cigarros e tinta armazenado naquele macacão azul-escuro. Seu macacão sempre me fazia imaginar que papai fosse um daqueles pintores dos quais não gostamos na infância. O cheiro de papai e mamãe me acalentava e isso já bastava. Ambos estavam ao meu lado, mas longe, muito longe, mas o cheiro ficava.
Ao anoitecer, deitava com mamãe afundando minha cabeça em seu peito e sentindo seu cheiro de lençóis recém-lavados com amaciante de lavanda, tentava não adormecer para poder encontrar papai na volta do trabalho, falhava todos os dias, acordando somente quando ele me carregava no colo e me colocava de volta em minha cama. Não falava, não desejava boa noite e não pedia a benção, gostava de sentir o amor através dos cheiros. Mamãe dizia que me amava e papai também, beijavam minha cabeça e faziam a oração do anjo protetor. Eles estavam do outro lado da parede, mas o cheiro ficava em forma de afago. Guardava em mim os cheiros e os pedidos de proteção ao divino, isso já me bastava.
Durante anos a fio papai foi só um cheiro. Quando saiu de casa, fui perdendo gradativamente todas as referências que havia selecionado para o meu afago. Mamãe começou a fumar despretensiosamente, sempre com ar de muita preocupação, havia abandonado o Hollywood de filtro vermelho e optou pelo Derby de filtro azul. Perdeu seu cheiro de lavanda e ganhou um cheiro muito forte e amargo de cigarro barato.
Na adolescência, comecei a fumar escondida de mamãe com um ex namorado, mas odiava o cheiro, pois aquele não era o cheiro da minha infância. Larguei o fumo. A vida não mais tinha cheiros de afago e silêncios tranquilos.
Depois de anos reencontrei papai e seu cheiro de cigarro Hollywood. Lembro-me do encontro, foi numa manhã calma como essa, era domingo, estávamos no interior do sertão paraibano. Tudo havia mudado, principalmente meu olfato e meus sentimentos em relação a paternidade. Papai sentou-se no chão, ao lado da minha cama, passou seus dedos em meu cabelo e o cheiro de cigarro entorpeceu-me as narinas. Não queria acordar, não queria falar, não queria toque, não queria. Depois de muito relutar abri os olhos e lá estava o homem, meu pai, com cheiro de cigarros Hollywood, olhos cansados e ar de arrependimento. Calei-me. Calei por uma semana, por um mês, por anos. Voltei a colecionar cheiros e silêncios. Papai foi embora mais uma vez, pois ele não havia regressado. E eu, voltei a fumar.
Hoje, fumo como as personagens de Godard; nas manhãs de preguiça, nas madrugadas solitárias, nos dias de tensão e quando amo. Afastei-me do Hollywood e ensinei aos meus sentidos que cigarro tem cheiro de cinema francês e silêncio apaziguador.
A caixa das mais afastadas lembranças quase nunca é aberta, mas em dias como hoje onde o silêncio é cortado pelas cantigas de um grilo perdido nas esquinas desse apartamento, onde a cidade está vazia como um cemitério esquecido, lembro-me da vida em cheiros e vazios.
Descobri que amo em cheiros e silêncios.


7 comentários:

  1. que texto lindo.
    a Luciana que eu quero ser, fuma. mas a que peleja, esquece.

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    1. Ainda bem que existe a que peleja e esquece, gatan. (((:
      E obrigada pelo elogio. <3

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    2. Luciana. Deixa eu te contar um segredinho; eu só vim pro mundo do blog pq eu li o seu blog de cabo a rabo e eu to MUITO FELIZ por receber o seu elogio. MUITO MESMO! Esse blog é uma tentativa de me descobrir na escrita. Obrigada. <3 <3 <3

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  2. Lindo mesmo.
    Eu fumo, mas a lazer. Que é algo que as pessoas não entendem muito. Tenho vícios, mas são outros.
    E adorei sua história em cheiros.

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