domingo, 28 de agosto de 2016

Os barulhos do sítio

Gosto de ouvir o barulho dos motores cessando. A luz laranja caindo sobre o teto da casa de mamãe, fazendo com que as copas das árvore brilhem e pareçam carregadas do pomo de ouro da doce Afrodite. Gosto de ouvir o piado dos pardais se aninhando nas árvores e o farfalhar das folhas quando o vento de Aracati sopra no Alto Sertão. Observo o cuidado das galinhas em juntar todos os seus sete pintinhos e levá-los até o antigo forno a lenha que Vovó usava. Gosto de olhar a fumaça do meu chá brincando contra a luz do sol que se põe no fim da rua de Vovó e de me balançar na rede de varanda azul, enquanto o mundo recolhe seus filhos. Gosto de ouvir os pais chegando do trabalho, dos seus suspiros de cansaço e do barulho da água do chuveiro que leva embora a sujeira da cidade. Gosto de sentir o cheiro do guizado das panelas alheias e de ouvir as vizinhas avisando que o arroz de Dona Dalila queimou por causa da fofoca dela com Dona Graça no pé do muro. Gosto de ouvir o motor da despolpadeira de seu Borges parando devagar e de sua alegria pela boa quantidade de arroz retirada na semana. Do barulho dos chocalhos das vacas de seu Bastião, do estalo do chicote no ar e do seu cantar de boiadeiro. Gosto de ouvir o chiado da vassoura de palha de Dona Mocinha juntando as folhas no terreiro e dos seus gritos por suas filhas, que adoram jogar bola no terreiro de Dona Nitinha, pois o terreiro de lá tem menos pedras e não machuca os pés. Gosto de ouvir o barulho do aro da Monark azul de meu avô e de sua gargalhada quando lhe peço um real. Gosto de ouvir o barulho da tesoura de Tia Marlene cortando tecido sobre a mesa de madeira e do barulho que sai da sua Singer junto com algum vestido de chita. Gosto de ouvir o arrastar dos chinelos de Mamãe e da sua cadeira de balanço sendo levada para o alpendre.
Gosto de ouvir a casa de Vovó e tudo que existe ao seu redor, assim me sinto mais próxima dela e do seu amor. 
Gosto de sexta-feira. Nela, tudo se acalma e tudo se recolhe. 

terça-feira, 16 de agosto de 2016

Hoje,
queria ser um pouco
do que ficou debaixo das tuas unhas
e mais um pouco das gotículas
que ficaram dependuradas em tua grossa barba.

Hoje,
queria ser um pouco de mim
que ficou espalhado em teu lençol,
o cheiro dos travesseiros
e a mancha de hidratante na barra da tua toalha.

Hoje,
queria ser o outro prato em tua mesa
o copo extra no braço do sofá,
a borra de batom nas bitucas de cigarro,
a segunda voz.

Hoje,
queria ser a pontinha da marca
que deixei em teu peito,
o sangue em teus lábios
e a ardência na pele riscada.

Hoje,
queria ser todos os poucos
espalhados de mim, em ti
e no fim da madrugada
materializar-me ao lado direito da tua cama
e sussurrar com os lábios semicerrados:
“dorme bem, baby”.

Amanhã,
queria amanhecer sendo o outro corpo,
ser um dos teus sorrisos
o segundo café
e ocupar um pouco destes espaços.

quinta-feira, 11 de agosto de 2016

Três horas da manhã,
a ponta do meu lápis bate
i n c a n ç a v e l m e n t e
sobre minha última folha.
Giro, levanto, tomo mais um café
Forte suave gelado quente
meus sentidos me traem.
Existe um vazio em mim
e em vários outros cômodos da casa.
Minha cabeça não desgruda
da causa dessa amargura
e meus olhos não largam teus traços.
Sofro laboriosamente.
Em imaginação
prendo-me aos teus pés
e sinto como se mil animais furiosos
desfiassem minha carne.
Teu amor é bruto
deixou marca em toda parte.
Meus sentidos me traem
meu corpo me trai
e se contraí quando sente a marca do teu.
Meu corpo pede cama
Deito, viro, reviro
Afundo-me nos travesseiros
e sinto a doce sangria
da água contida lavando meu peito.
Já é outro dia.
Agora, não mais peno por tua falta
me enlaço nas sobras dos meus pés
e sorrio lembrando-me dos dois rios
que são teus olhos.
Nada como o clichê
do velho tempo dependurado
na parede do calejado coração
para mostrar a sobra que me falta
do amor próprio.

domingo, 7 de agosto de 2016

Do só sentir

Eu vejo o muito. Vejo o desespero nos olhos dos jovens e a insegurança nos sorrisos dos mesmos. Eu vejo a candura nos olhos das nossas crianças e vejo o cansaço nos olhos de mainha. Eu vejo o muito e o que mais vejo é a dor. A dor nos olhos daquele rapaz que conheço há alguns poucos anos, mas que nunca me prontifiquei para falar sobre a tal dor. Quase nunca nos vemos e quando nos encontramos não queremos falar sobre a dor que nos fere e nos caleja. Eu vejo o amor das nossas mães e todo o cuidado amornado dentro das broncas e dos risos disfarçado. Eu vejo a simplicidade e a delicadeza dos pequenos gestos de bem-querer, quando passo por um par de idosos voltando da feira. Eu vejo a garra das mulheres das esquinas e a ressequidão em seus olhos. Eu vejo a dor. E eu sinto a dor. Eu vejo o tanto que a moça dos olhos de coruja têm a me dizer, por querer me proteger de um roteiro que ela bem conhece. Também vejo sua dificuldade em dizer-me tais coisas em frases carinhosas, revelando-me tudo em forma de dureza e culpa. Eu vejo a culpa. Eu vejo a culpa e a dor nos ombros das moças que me cercam. Eu as vejo. Eu as sinto. Eu vejo a culpa da moça que não soube amar, por não ter oportunidade de encaixar-se em um corpo abrigo. Eu vejo a dor que ela carrega estampada no braço esquerdo. Eu vejo os sem pares. Eu vejo a dor e a solidão que esses carregam. Eu sinto. Eu vejo os perigos nos sulcos da face daquele homem. Eu vejo sua solidão, seu escárnio e seu prazer em ferir com o mesmo ferro que foi ferido. Eu vejo e eu tento não o sentir, mas o sinto. Eu vejo o medo do abandono talhado nos olhos daquele rapaz e sua insegurança espalhada em cada dente daquele falso sorriso. Eu vejo a criança trancafiada dentro daquele outro rapaz e toda a sua necessidade em ser vista. Eu vejo a dor da moça que só pancadas levou. Eu a sinto. Não queria, mas a sinto. Eu vejo o seu zelo em transformar dor e amargura em algo que floresça e não em algo que rasteje, como bem faço. Eu vejo seu cansaço cotidiano e seus forçados sorrisos para convencer a si que desistir não é uma opção. Eu vejo o início do ciclo da vida em minha tia, agora também avó, e sinto que apesar do ontem, ainda existe algo esperando por ser cultivado. Eu a vejo, eu a escuto ninando sua pepita de ouro e as sinto.
Eu vejo o muito, sinto o mundo e sou cada um dos que sinto e vejo. Mas, sinto. E só.