terça-feira, 8 de novembro de 2016

Um Tropeço, um Xico e uma moleca

Atualmente pouquíssimas - e nem sei dizer se posso nomear de: triviais coisas, pelo afeto que existe nas tais coisas -, mas, como ia revelando; pouquíssimas e bobinhas - uma forma mais adocicada de não desvalorizar as ditas coisas -, tem me dado de fato uma certa alegria sem pesos. Apenas alegria por alegria, pelo simples fato de existir e estar ali, naquele momento, naquela luz, com aquela trilha de fundo - Gregory and the Hawk, atualmente, sempre! pela fofura, pela suavidade da voz, pela leveza de me fazer saltar da amargura incrustada para uma nuvem de algodão doce-. Tropeço, o gato, é totalmente responsável por alguns dos muitos momentos de alegria diária. Ele sabe o quão abusada sou na minha pequenez forma de menina fofa e bem humorada. Ele, com apenas 4 meses de convivência sabe que sou terrível com humanos, não sei manter contato e muito menos demonstrar meus afetos mais saltitantes e coloridos. Tá, não é só por me sentir acolhida por Tropeço, mas também pelo fato de poder amar um ser vivo que não me cobra absolutamente nada - só ração, mas também, né… quem mandou prender ele o dia todo?! -, é um amor bem de levinho, sem essas preocupações diárias de: “ahmeudeusdocéu, será que eu dei boa noite?”, “esqueci de dar bom dia, será que a pessoinha vai chiar por isso e achar que sigo a moda do desinteresse?”. Mana, que cansêra dessa coisa toda!


Como ia dizendo, Tropeço tem me deixado alegre na minha tristeza cotidiana, tem me mordido na hora certa e me dado carinho com suas fofas patinhas e com seu molhado focinho altas e tantas da madrugada, que é quando acordo de algum pesadelo, ou pela simples falta de sono. Agora, além do Tropeço, o Xico - gato preto da rua, morador do meu coração, mas sem teto e sem dona -, tem muito me visitado. Ele chega nas horas mais absurdas dos meus inseguros pensamentos, olha pra mim com aqueles dois olhinhos de vidro amarelo, esconde a língua e fica a cara daqueles desenhos altamente perfeitos da disney e etc. Uma fofura de gato! Outro que soube estabelecer uma relação de amor sem muito grude e cobranças. Ele só aparece, me faz sorrir, come e vai embora. Algumas vezes grita escandalosamente em minha janela e em outras entra e sai que eu nem vejo.
Gato, gato, gato, gatos… só fala em gato agora? Tem também as crianças, ou mais especificamente: a criança! Fui jogada, isso mesmo jo-ga-da, para uma turma de crianças muito crianças (3-4 anos) sem a mínima experiência, o que me matou profundamente e me fez cair em um plano de inutilidade e insegurança sem fim. Mas passou. Passou por causa dessa dita criança; um moleca astuta, de três anos de idade, negra!, de olhos e sorriso inspiradores, atrevida e cheia dos eu-sei-o-que-eu-to-fazendo. Confesso, a moleca tem amolecido meu coração para as questões futuras de uma possível solo maternidade.
Esses potinhos de alegria tem me feito viver, criar mais braços e pernas para continuar.
Obrigada ao universo e a todas/os que estão por mim em algum plano por aí.


Eu penso demasiadamente e quase nunca quero compartilhar esses pensamentos. Ainda não sei se, por um breve lapso de medo das reações mais adversas do público, ou, por estar enfadada o suficiente dessa sociedade geradora de amarras imbecis. 
Vivemos um momento estranho na história - digo isso do lugar de fala de quem se diz de esquerda, já que agora somos todas obrigadas a nos identificarmos como prisioneiras sem direito a julgamentos ou defesas -, uma onda conservadora e violenta atacou o nosso país sorrateiramente e nós - agora como um todo -, gostamos de aplaudir e transformar nossas misérias em vísceras glamourosas expostas em um cinema de péssima qualidade nomeado de globochanchada, ou até mesmo em piadas internas expostas nas redes da carência e do vazio. Argh! Como e quando nos tornamos tão inúteis? Ainda não consigo identificar - agora como apenas uma individua em sua insignificante casca -, se somos culpadas por essa vergonhosa reação, ou se, no decorrer do processo de redemocratização e emancipação política venderam-se ao american dream de corpo, alma, boceta e cú, que como todo bom vendedor prometeu toda a liberdade e igualdade que uma democracia pode oferecer, tudo parcelado em 12 vezes, à preferência brasileira.
Um bom caçador sempre sabe onde pisar e quando armar uma boa arapuca. Eis um fato: os conservadores não são idiotas, apesar dos seus ideais serem enormes valas de puro excremento suíno. Eles são bons caçadores e nos abocanhou de vez, quem pode se safar correndo para países vizinhos - que não estão lá as mil maravilhas -, se deu muito bem, por enquanto, quem ainda insiste em dar murro em ponta de faca e morrer a cada dia mais um pouco, como eu, persevera esperançosa em uma onda juvenil sedenta por reformas. 
O pessimismo é desencorajador e mau humorado, ele me tem em suas mãos de uma forma incrível, vez ou outra escapo por entre seus dedos e consigo me articular desorganizando espaços e sólidas estruturas, são pequenos movimentos, confesso. Me obrigo a acreditar na teoria dos dez - se você atingir dez pessoas, essas dez vão atingir mais dez e assim por diante -, que vi naquele filme The Edukators, juvenis anarquistas e insanos, uma combinação perfeita para preencher meu vazio de sonhos fugazes.
Viver os sete dias nessa realidade suja, sofrendo com os tiros do governo, da mídia mor do país e da bancada evangélica tem me dado imensas dores estomacais. Assim como tem me sugado de forma terrivelmente assustadora. Por vezes me sinto um inútil mosquito com as asas cobertas de excrementos, em outros momentos me sinto como um forte e robusto búfalo; selvagem e animalesco o suficiente para pisotear todos esses “homens de bem”. 
Hoje sou um mosquito, e peço humildemente desculpas à sociedade, mas eu preciso morrer um dia para devorar os outros seis.

quarta-feira, 2 de novembro de 2016

Os meses são todos iguais

Em novembro as coisas são sempre iguais e em Sousa é o ano todo assim. O rapaz do falso sorvete italiano está sempre no meio da calçada da praça, bem em frente ao coreto, onde os meninos do rock escutam sempre os clássicos do SOAD e Metallica, que são muito bons, inclusive. Todos sempre estragando seus juvenis corpos com álcool e outras substâncias facilmente e figuradamente encontradas no filme Trainspotting, o que também é muito bom e te faz viajar loucamente por seus mais profundos desejos e temores. Mas, os excessos destroem muita coisa, não só essa podre carcaça que nos abraça e nos camufla dia e noite.
Dona Rosália está sempre ao lado esquerdo da praça, com sua pequena e confortável barraquinha de crepes, também, sempre acompanhada do seu filho Eduardo, que tentou vida na cidade grande mas teve todos os sonhos triturados pelo bicho homem criador do capitalismo selvagem para com os negros nordestinos, ao lado de ambos está Maria Eduarda, menina de olho ligeiro e cabelo escorrido. Sempre a vejo acompanhando a Avó nestes duros percussos que ela faz em busca das latinhas para a reciclagem. A negra, pobre, sem escolaridade e velha, precisa se virar com o que sobra, é triste. Mas a vida sempre é triste. A vendedora de cigarros e cana por dose, fica do lado direto da praça, próxima dos espetinhos que vendem cerveja, alegria e etc. Pra mim, o lado direito é dos cachaceiros e o esquerdo da família politicamente correta, polidamente e higienizadamente feliz; branca e feliz. Eca! Os pula-pula estão sempre impecavelmente inflados com suas gigantescas bocas gritando: “venha a mim”, como em um desses filmes trash, que eu detesto. De lá gritos estridentes e felizes saltam com os pequenos bonequinhos de porcelana criados ao banho maria. É, as famílias sousenses são felizes, se não, as Avós o são, empurrando satisfeitas os carrinhos de vossos netinhos e netinhas, todas emperiquitadas em seus vestidinhos de tecido, corte reto e botões impecavelmente alinhavados no meio do corpo. Confesso que adoro as roupinhas das senhoras. Os meninos do rock dão um contraste fudido a tudo que ali se encontra e eu acho isso incrível, realmente é uma das coisas que me deixa satisfeita quando saio de casa em busca de um picolé de limão e sou obrigada a engolir a branca e falsa sociedade sousense. Mas, ao que me parece, de um jeito bem, ruim os meninos do rock foram aceitos e agora representam apenas uns bobos da corte para a elite. É notável o escárnio dos pais e mães quando param em frente ao coreto e cochicham para seus filhinhos fedidos; “eles são uns loucos drogados e satanistas”. Argh! O bicho homem quando se sente elite fede mais ainda. Algumas figuras solitárias também dividem o mesmo espaço desta praça, quase sempre imperceptíveis. Chegam, sentam em um banco qualquer, observam os meninos do rock, sentem o mormaço dos 38º do Sertão e balançam a cabeça em um gesto negativo para si mesmos. Reconheço o gesto e também a tal da solidão em 38º. 
A moça, tão observadora em sua saia plissada e floreada – presente de uma amiga querida –, entediada com a vida em quatro paredes, percebe que cresceu e Sousa... bem, Sousa sempre foi pequena. São 365 dias exatamente iguais, nada sai do local riscado, o escárnio dos mais ricos é sempre o mesmo, a resistência dos meninos do rock é sempre a mesma, o cansaço nos olhos de Dona Rosália é sempre o mesmo, e a dor de senti-la cansada é sempre a mesma.
Ela cresceu, mas continua fazendo o mesmo desde que notou seu crescimento. Senta sempre no mesmo lugar da escadaria – entre as duas torres, agora erguidas, como ela, da velha Matriz –, onde consegue enxergar sua igreja preferida – a dos Pretos, ou do Rosário, como preferem os brancos –, onde pode ser singelamente tocada pela lua, onde pode ouvir todos os singulares barulhos de um leque de vida que se abre em sua frente, chupa o seu picolé de limão, que é vendido a preço de pão do outro lado da rua, e respira sempre insatisfeita. 
Ela, espera algum acontecimento, mesmo que este seja trágico.

sexta-feira, 21 de outubro de 2016

Dia VI

Já tentou fumar um cigarro na chuva sem derrubar as cinzas? Ela se torna tão frágil quanto eu, os pingos parecem ácido corroendo a crosta que a cobre. O vento lambe o vazio com sua enorme e desrespeitosa língua. Levando finalmente ao chão a fina estrutura cinza, àquela, cuja qual tentei manter erguida com todo o equilíbrio polido que me coube na hora da repartição das defesas inefáveis. A brasa exposta é tão quente e vermelha quanto o sangue escapando de mais um corte profundo e interno. Pareço viver em uma cena de um daqueles filmes franceses sobre a solidão e a fragilidade do ser humano, gravados em uma dessas câmeras antigas, da qual nunca lembrarei de fato o nome correto. Apagaram-se as luzes da rua no último trago, sinto-me tão confortável do lado de fora, pois deixou de existir a doentia necessidade de cobrir-me ou enfiar-me em um desses vãos cheios de goteiras. Alguém acendeu as luzes, será um sinal do divino? Eles enxergaram minha bagunça, mas eu estava tão alta que ninguém se deu conta da desordem. Eu deveria não fumar e não esperar a exposição do meu avesso em busca de me sentir parte de algo do qual nunca farei parte. Essa infindável goma de pessoas enamoradas por sentimentos leves e fraternos. Eu deveria não dever nada a mim. Muito menos cobrar a dívida de querer ser o que não se é, dentro desse imenso aglutinamento de amores fictícios. Talvez todos os seres avessados internamente faça parte de um filme francês, dirigido por um desses loucos adoradores do caos. A importância de enxergar o interno através dos olhos da dor alheia abre uma imensa vala de sentimentos formidáveis. Eles são pequenos eletrochoques, acelera a pulsação e introjeta a ideia de que ainda estou viva, apesar da fina expressão de moribunda e da fraca respiração formarem uma bolha impenetrável. Estar de pé nunca significou estar viva. A morte caminha e nunca dorme; nunca senta e nunca descansa. Ela sonda. 

10 de abril de 2016

sexta-feira, 7 de outubro de 2016

Do peito floreado pós corte.

Podei o pé de cola,
cada galho, um laço
cada laço, um conto com ponto
cada ponto com sua devida necessidade de uso.

Podei o pé de cola,
solo agora ele está
porém, mais firme que uma rocha
preso ao chão com gana de viver.

Podei o pé de cola,
o deixei com apenas uma via
e por essa via ele há de crescer
agora, com a força 
de poder ser exatamente o que se é.

Podei o pé de cola
e meu peito floreou. 

O pé de cola da minha infância

Plantei um pé de cola na casa de Mamãe, quando era bem menina, um pouco sapeca, e, muito ligada aos bichos e plantas. Enquanto plantas existiam na casa de Mamãe, que já foi a casa de Tia Marlene e de Vovó, não me preocupava muito em plantar, mas sim em cuidar das que ali viviam. Por essa época me envolvia bem mais com os bichos. Uma vez Tia Marlene me deu uma franga, era linda a Dona cor sim-cor não! Até hoje não sei que fim levou minha franga pedrês. Diz Tia Marlene que ela fugiu, porque não apertei o nó como me mandaram. Nunca fui boa em apertar o nó para manter os bichos perto de mim, tampouco gente. Pois bem, que Tia Marlene me perdoe, mas eu acredito piamente que Dona cor sim-cor não foi direto do pé de Seriguela, onde era sua dormida, para a panela de ferro que ela havia comprado na feira da Estação e que era o pico daquele imenso tripé de panela, tripé esse que ainda está na esquina do lado esquerdo da cozinha de Mamãe. Depois desse episódio com a franguinha tentei cuidar de alguns cachorrinhos, mas Mamãe sempre os colocava para correr. Dizia que era mania besta essa de querer criar os cachorros do monturo, mas eu nada podia fazer se os bichinhos me chamavam de manhã bem cedinho antes de partir para o colégio. 
Passados alguns bons anos algumas coisas mudaram por estas redondezas. As plantas de Vovó e de Tia Marlene foram arrancadas do quintal e no lugar delas restou uma imensa vala que o próprio solo abriu, como quem queria falar da dor e do vazio de se tornar seco e improdutivo. Nunca gostei desse momento da vida, e ainda não gosto. Segundo Mamãe, o corte fatal foi necessário. Já havia saído de casa fazia algum tempo, poucos dois anos, se bem me recordo. De lá para cá, sempre que venho na casa de Mamãe sinto um imenso vazio, abrandado apenas por causa das gatas, que praticamente obriguei Mamãe de abrigar, e do pé de cola plantado em minha infância.
Esse dito pé de cola foi plantado por uma teimosia minha, ainda quando dividíamos a casa com minha Tia Marlene. Eu achava fantástica a ideia de ter um pé de cola em casa. Mamãe tentou de tudo para derrubar o danado. Cortou ele mais de dez vezes, colocou óleo queimado e o escambau, como a ensinaram. Mas nada, nada mesmo, fez com que ele morresse. Ela cortava ele, deixava ele só no tronco, limpo, seco e ferido. Mas com uns quinze dias lá estava ele cheio de novas galhas e folhas. Parecia que quanto mais Mamãe tentava cortar as galhas dele mais ele crescia todo desgrenhado. Ela dizia que o bicho era teimoso feito a dona que o plantou.
Mamãe desistiu. Deixou o pé de cola crescer, crescer e crescer. Hoje cheguei em Mamãe e lá estava ele, todo desgrenhado, galhas para todos os lados, todo espalhado e desengonçado. Não tinha um pingo de harmonia vindo dali. Olhei para ele um bom tempo e não pensei duas vezes, busquei um facão do vizinho, instrumento esse que nunca havia me atrevido em tentar usar, mas o usei. Olhei um bom tempo para o teimoso do pé de cola e vi que do seu tronco, já todo ferido e cheio de marcas dos duros cortes do passado, brotava uma infinidade de galhos, cada um caído para um lado diferente. O jeito foi me desfazer de todos e deixar apenas um. Fiquei de coração todo esmigalhado por estar cortando as galhas do meu pé de cola, mas sabe, a vida tem dessas. É necessário cortar todos os galhos ao nosso redor para que uma nova fase de crescimento chegue. É necessário cortar todas aquelas folhas novas que vão se confundir com as folhas de outras árvores. O corte é necessário para o crescimento. O pé de cola foi bem podado e agora respira apenas por uma via, a via do seu novo crescimento. Penso que Mamãe aceitou sem medo que quando uma árvore finca suas raízes na terra escolhida não existe corte que a faça morrer.
A resistência do meu pé de cola é antes de tudo a minha resistência. É a graça de saber a terra que se pertence e a força de querer ficar por lá, de ser aceita do jeitinho que se é. Cheia de ramificações e das manias de querer se atrepar em tudo e desbravar tantos outros caminhos e encontros.
O pé de cola da minha infância entrou em uma nova fase.

domingo, 28 de agosto de 2016

Os barulhos do sítio

Gosto de ouvir o barulho dos motores cessando. A luz laranja caindo sobre o teto da casa de mamãe, fazendo com que as copas das árvore brilhem e pareçam carregadas do pomo de ouro da doce Afrodite. Gosto de ouvir o piado dos pardais se aninhando nas árvores e o farfalhar das folhas quando o vento de Aracati sopra no Alto Sertão. Observo o cuidado das galinhas em juntar todos os seus sete pintinhos e levá-los até o antigo forno a lenha que Vovó usava. Gosto de olhar a fumaça do meu chá brincando contra a luz do sol que se põe no fim da rua de Vovó e de me balançar na rede de varanda azul, enquanto o mundo recolhe seus filhos. Gosto de ouvir os pais chegando do trabalho, dos seus suspiros de cansaço e do barulho da água do chuveiro que leva embora a sujeira da cidade. Gosto de sentir o cheiro do guizado das panelas alheias e de ouvir as vizinhas avisando que o arroz de Dona Dalila queimou por causa da fofoca dela com Dona Graça no pé do muro. Gosto de ouvir o motor da despolpadeira de seu Borges parando devagar e de sua alegria pela boa quantidade de arroz retirada na semana. Do barulho dos chocalhos das vacas de seu Bastião, do estalo do chicote no ar e do seu cantar de boiadeiro. Gosto de ouvir o chiado da vassoura de palha de Dona Mocinha juntando as folhas no terreiro e dos seus gritos por suas filhas, que adoram jogar bola no terreiro de Dona Nitinha, pois o terreiro de lá tem menos pedras e não machuca os pés. Gosto de ouvir o barulho do aro da Monark azul de meu avô e de sua gargalhada quando lhe peço um real. Gosto de ouvir o barulho da tesoura de Tia Marlene cortando tecido sobre a mesa de madeira e do barulho que sai da sua Singer junto com algum vestido de chita. Gosto de ouvir o arrastar dos chinelos de Mamãe e da sua cadeira de balanço sendo levada para o alpendre.
Gosto de ouvir a casa de Vovó e tudo que existe ao seu redor, assim me sinto mais próxima dela e do seu amor. 
Gosto de sexta-feira. Nela, tudo se acalma e tudo se recolhe. 

terça-feira, 16 de agosto de 2016

Hoje,
queria ser um pouco
do que ficou debaixo das tuas unhas
e mais um pouco das gotículas
que ficaram dependuradas em tua grossa barba.

Hoje,
queria ser um pouco de mim
que ficou espalhado em teu lençol,
o cheiro dos travesseiros
e a mancha de hidratante na barra da tua toalha.

Hoje,
queria ser o outro prato em tua mesa
o copo extra no braço do sofá,
a borra de batom nas bitucas de cigarro,
a segunda voz.

Hoje,
queria ser a pontinha da marca
que deixei em teu peito,
o sangue em teus lábios
e a ardência na pele riscada.

Hoje,
queria ser todos os poucos
espalhados de mim, em ti
e no fim da madrugada
materializar-me ao lado direito da tua cama
e sussurrar com os lábios semicerrados:
“dorme bem, baby”.

Amanhã,
queria amanhecer sendo o outro corpo,
ser um dos teus sorrisos
o segundo café
e ocupar um pouco destes espaços.

quinta-feira, 11 de agosto de 2016

Três horas da manhã,
a ponta do meu lápis bate
i n c a n ç a v e l m e n t e
sobre minha última folha.
Giro, levanto, tomo mais um café
Forte suave gelado quente
meus sentidos me traem.
Existe um vazio em mim
e em vários outros cômodos da casa.
Minha cabeça não desgruda
da causa dessa amargura
e meus olhos não largam teus traços.
Sofro laboriosamente.
Em imaginação
prendo-me aos teus pés
e sinto como se mil animais furiosos
desfiassem minha carne.
Teu amor é bruto
deixou marca em toda parte.
Meus sentidos me traem
meu corpo me trai
e se contraí quando sente a marca do teu.
Meu corpo pede cama
Deito, viro, reviro
Afundo-me nos travesseiros
e sinto a doce sangria
da água contida lavando meu peito.
Já é outro dia.
Agora, não mais peno por tua falta
me enlaço nas sobras dos meus pés
e sorrio lembrando-me dos dois rios
que são teus olhos.
Nada como o clichê
do velho tempo dependurado
na parede do calejado coração
para mostrar a sobra que me falta
do amor próprio.

domingo, 7 de agosto de 2016

Do só sentir

Eu vejo o muito. Vejo o desespero nos olhos dos jovens e a insegurança nos sorrisos dos mesmos. Eu vejo a candura nos olhos das nossas crianças e vejo o cansaço nos olhos de mainha. Eu vejo o muito e o que mais vejo é a dor. A dor nos olhos daquele rapaz que conheço há alguns poucos anos, mas que nunca me prontifiquei para falar sobre a tal dor. Quase nunca nos vemos e quando nos encontramos não queremos falar sobre a dor que nos fere e nos caleja. Eu vejo o amor das nossas mães e todo o cuidado amornado dentro das broncas e dos risos disfarçado. Eu vejo a simplicidade e a delicadeza dos pequenos gestos de bem-querer, quando passo por um par de idosos voltando da feira. Eu vejo a garra das mulheres das esquinas e a ressequidão em seus olhos. Eu vejo a dor. E eu sinto a dor. Eu vejo o tanto que a moça dos olhos de coruja têm a me dizer, por querer me proteger de um roteiro que ela bem conhece. Também vejo sua dificuldade em dizer-me tais coisas em frases carinhosas, revelando-me tudo em forma de dureza e culpa. Eu vejo a culpa. Eu vejo a culpa e a dor nos ombros das moças que me cercam. Eu as vejo. Eu as sinto. Eu vejo a culpa da moça que não soube amar, por não ter oportunidade de encaixar-se em um corpo abrigo. Eu vejo a dor que ela carrega estampada no braço esquerdo. Eu vejo os sem pares. Eu vejo a dor e a solidão que esses carregam. Eu sinto. Eu vejo os perigos nos sulcos da face daquele homem. Eu vejo sua solidão, seu escárnio e seu prazer em ferir com o mesmo ferro que foi ferido. Eu vejo e eu tento não o sentir, mas o sinto. Eu vejo o medo do abandono talhado nos olhos daquele rapaz e sua insegurança espalhada em cada dente daquele falso sorriso. Eu vejo a criança trancafiada dentro daquele outro rapaz e toda a sua necessidade em ser vista. Eu vejo a dor da moça que só pancadas levou. Eu a sinto. Não queria, mas a sinto. Eu vejo o seu zelo em transformar dor e amargura em algo que floresça e não em algo que rasteje, como bem faço. Eu vejo seu cansaço cotidiano e seus forçados sorrisos para convencer a si que desistir não é uma opção. Eu vejo o início do ciclo da vida em minha tia, agora também avó, e sinto que apesar do ontem, ainda existe algo esperando por ser cultivado. Eu a vejo, eu a escuto ninando sua pepita de ouro e as sinto.
Eu vejo o muito, sinto o mundo e sou cada um dos que sinto e vejo. Mas, sinto. E só.  

domingo, 17 de julho de 2016

Do tamborilar

Os dedos tamborilam
sobre a carne macia
a carne macia
arisca

se ouriça

Os dedos tamborilam
sobre o ventre sedento
o ventre sedento
se leva
e eleva

Os dedos tamborilam
sobre as ancas

                                                                                a
                                                                               m
                                                                                i
                                                                          em c

                                                                                 em b
                                                                                       a
                                                                                       i
                                                                                       x
                                                                                       o

                                                  de um lado
                                         ortuo ed

no
centro
do
mundo

Os dedos tamborilam
sobre os pelos finos
amontoados
que se embolam.

Os dedos tamborilam
Os dedos se chocam
Os dedos se molham
Os dedos gozam. 

sábado, 16 de julho de 2016

Beco sem saída

Pés gelados e You La Tengo tocando no rádio antigo do quarto. Uma cortina feia e amarelada encarava-me. De pés gelados encosto na pele das coxas dele só para ganhar aquele sorriso de menino bobo brincalhão. Today is the day me faz dos pés até as coxas do menino brincalhão que, conheci num descuido da alma pesada. Me deixou em paz, me deixou quietinha. Me fez um café e uma cara feia. Cantarolou Today is the day como se não houvessem preocupações com os limites e perigos. Como se o dia só desse partida de meio dia em diante. Depois de esquentar os pés com afagos e suspiros.
Bebericando café preto, sem açúcar, resistente a insistência do leite leitissímo. A marca preferida entre todas as outras superficialidades da cidade grande e da podre industria alimentícia. Domingo! Não havia som de carro, não havia buzinas, conversas apressadas, despertadores ou preocupações com as contas que vivem em atraso e o cão que ladra dentro do peito. Não havia nada e o nada se fez tudo em sua plenitude de não ditos e gestos de carinho.
Era uma caminhada na rua de prédios demolidos, fazendo esquina com o samba que me faz transbordar de vida, bandeirolas fora de época. Arte sem dono. Mãos dadas, dedos entrelaçados e a estranheza da jovem amarga. O carinho não esperado e sem repeteco. Um par de jarro com flores mortas sentados no banco da praça. Ouvindo e vendo não sei o quê. Talvez, ouvindo e vendo o nada que se forma dentro da casca e todos os laços bem dado para que nada saia do lugar. Para que o peito aguente os trancos e barrancos de mais uma dezena de mudanças, carregando a chama acesa da vela para outras casas, deixando assim o escuro para a reflexão de tantos outros. Era o par de jarro com flores mortas, tentando encontrar uma forma rápida e indolor de sair da casa com a chama da vela ainda viva.
Pés reavivados caminham de volta pelos mesmos desejos. Caminhada arrastada, arrastando a vontade de não mais ir e só ficar. Ficar sem se importar se a morte vos espera na boca da satisfação do desejo e da união. Caminhada arrastada até os três degraus do prédio demolido, contornados com destreza, o corpo inclinado para um lado, um abraço, um beijo, um afago.
O contrato fora assinado. Sem meia volta, sem volta e meia. O contrato da busca itinerante pela satisfação do desejo. Mas, existe a coragem de sentir e externar repulsa por essa morte. 
Preferiu viver em vontades ao invés de sepultar os próprios desejos.

quarta-feira, 8 de junho de 2016

Hoje. 
Mais um interminável dia para a conta que,
nunca chega ao fim.
Mamãe ligou; uma, duas, três e infinitas vezes.
Acatei ao seu chamado,
conversamos alguns bons seis minutos.
Mentimos.
Estamos sempre bem.
Mamãe ligou novamente.
Quer me ver.
Não acatei ao seu chamado.
Mentimos. 

Hoje.
Mais um daqueles dias extremamente cansados.
Onde me encontro tão exausta que,
não sei bem o que fazer.
Deveria descansar,
mas até isso esqueci como faz.
Só descanso quando descarrego
toda a minha energia em leituras infindáveis,
sejam elas de qual tipo for.
Lembro de uma música:
"Você é o espelho da sua mãe"...
Não lembro de quem é,
isso pouco importa.
Lembrei de quantas vezes briguei com mamãe,
por ela não saber descansar.

Hoje.
Não sei parar.
Talvez, se eu souber,
ou tentar...
morrerei.

Hoje.
.... 

quarta-feira, 1 de junho de 2016

Este é um poema 
Mas não é poema sobre a vida, amor, alegria 
ou coisa parecida.

Este é um poema
Um poema sobe a morte,
pois a morte anda mancomunada
                                               com o meu presente.

Este é um poema
Sobre a morte do meu pé de arruda 
e do meu pé de pimenta,
                                        logo em seguida.

Este é um poema
Um poema sobre os golpes insólitos da morte,
sobre seus passos surdos e suas retiradas.

Este é um poema
Um poema sobre o gato morto que encontrei
                                            na porta de minha casa.

E também sobre a morte do pai de Risália
Que partiu essa tarde de mãos dadas com a dama,
com sorrisos enlarguecidos,  atravessou a rua
e se foi.

Este é um poema
Um poema sobre a réstia da morte
deitada sobre o corpo do homem amado
que abandonei.

Este é um poema
Este é um poema sobre a morte.

Um poema sobre a morte
e também sobre a minha morte,
que me tem de trago em trago,
 de bituca em bituca
                                esquecidas.

Este é um poema
Um poema,
                                                  um poema sobre a morte.

E a morte só se faz notar quando se vai
deixando sorrisos congelados
nos lábios amedrontados.

Este é um poema.


quinta-feira, 26 de maio de 2016

Central do Textão


Olar. Olar.

Dia desses estava procurando blogs e dei de cara com um blog lindão chamado Borboletas nos Olhos (http://borboletasnosolhos.blogspot.com.br/). O que de certa forma me fez criar esse cantinho aqui e colocar meus textos e poemas no mundo. Fiquei por lá - pelo Borboletas nos Olhos -, lia sem parar, até que; "OK! Hora de ter o meu próprio blog e compartilhar com conhecidos, desconhecidos e futuros conhecidos". Fiz. Pensei uma pá de tempo se eu deveria mandar algo para a Central do Textão (http://www.centraldotextao.com/), o tal do 'blog dos blogs'. Fui lá e... TCHARAM! Mandei. Mesmo com toda a insegurança do mundo me arrastando para as gavetas do anonimato. Mesmo querendo me esconder e etc. Mas, pensei bem, li Borboleta nos Olhos mais uma vez, mais dez vezes, mais milhões de vezes e respirei. Daí que não faz uma semana que eu criei o blog, que eu mandei e-mail para o Central do Textão, que a Tina me respondeu super fofa e me adicionou em um grupo no facebook - onde estão reunidas/os muitas/os escritoras/os de blog -. Daí que quando olho pessoas bem lindas estão lendo e comentando meus textos. Daí que quando olho mais uma vez a Luciana Nepomuceno, dona do Borboletas nos Olhos, comenta meu texto. (!!!) Nesse momento notei o quanto posso aprender compartilhando minhas querelas e trocando muita energia positiva por meio desse cantinho.
Obrigada a Luciana, mesmo sem saber que me ajudou. E obrigada a Tina do Central do Textão por ter me acolhido por lá.


Sigamos! 

Da vida em cheiros e silêncio

Aprendi a fumar com meus pais, mais com papai do que mesmo com mamãe. Na infância, longe das pequenas cidades, do contato humano e afundada no centro das grandes capitais, encontrava mamãe fumando escondida e muito pensativa. O silêncio alheio sempre me encantou. Mamãe nunca foi uma mulher com cheiro de cigarros, apesar de fumar quatro vezes ao dia no pequeno banheiro da nossa segunda casa. Adorava observar sua falha tentativa de esconder do esposo e da filha o vício que a libertava. Ela, trancava-se no banheiro e colocava para fora do vitrô sua mão direita com seu Hollywood de filtro vermelho. Observava de longe, do fundo do quintal – meu lugar preferido até hoje –, seu rosto cansado e aliviado. Era o único momento em que mamãe era mais do que o duro e solitário papel de ser uma boa esposa e mãe. O cigarro acabava e ela fechava o vitrô, abandonando assim sua desnutrida liberdade feita em cigarros e fumaça. Naquela época não entendia nada do que escrevo agora, mas gostava de ver mamãe como uma fina estrela solitária de Hollywood, que com ela conheci nos filmes de sessão da tarde. Papai fumava no trabalho devido meus problemas respiratórios, saía de casa muito cedo. Em sua bolsa carregava um guarda-chuva, cigarros, um casaco e seu almoço preparado com muito zelo por mamãe. Vestido em um macacão azul-escuro, com a barra da calça desgastada e manchada de tinta, papai vinha se despedir me carregando no colo do meu quarto para o quarto de mamãe. Eu fingia dormir, pois não queria ouvir vozes, queria apenas sentir o seu cheiro de cigarros e tinta armazenado naquele macacão azul-escuro. Seu macacão sempre me fazia imaginar que papai fosse um daqueles pintores dos quais não gostamos na infância. O cheiro de papai e mamãe me acalentava e isso já bastava. Ambos estavam ao meu lado, mas longe, muito longe, mas o cheiro ficava.
Ao anoitecer, deitava com mamãe afundando minha cabeça em seu peito e sentindo seu cheiro de lençóis recém-lavados com amaciante de lavanda, tentava não adormecer para poder encontrar papai na volta do trabalho, falhava todos os dias, acordando somente quando ele me carregava no colo e me colocava de volta em minha cama. Não falava, não desejava boa noite e não pedia a benção, gostava de sentir o amor através dos cheiros. Mamãe dizia que me amava e papai também, beijavam minha cabeça e faziam a oração do anjo protetor. Eles estavam do outro lado da parede, mas o cheiro ficava em forma de afago. Guardava em mim os cheiros e os pedidos de proteção ao divino, isso já me bastava.
Durante anos a fio papai foi só um cheiro. Quando saiu de casa, fui perdendo gradativamente todas as referências que havia selecionado para o meu afago. Mamãe começou a fumar despretensiosamente, sempre com ar de muita preocupação, havia abandonado o Hollywood de filtro vermelho e optou pelo Derby de filtro azul. Perdeu seu cheiro de lavanda e ganhou um cheiro muito forte e amargo de cigarro barato.
Na adolescência, comecei a fumar escondida de mamãe com um ex namorado, mas odiava o cheiro, pois aquele não era o cheiro da minha infância. Larguei o fumo. A vida não mais tinha cheiros de afago e silêncios tranquilos.
Depois de anos reencontrei papai e seu cheiro de cigarro Hollywood. Lembro-me do encontro, foi numa manhã calma como essa, era domingo, estávamos no interior do sertão paraibano. Tudo havia mudado, principalmente meu olfato e meus sentimentos em relação a paternidade. Papai sentou-se no chão, ao lado da minha cama, passou seus dedos em meu cabelo e o cheiro de cigarro entorpeceu-me as narinas. Não queria acordar, não queria falar, não queria toque, não queria. Depois de muito relutar abri os olhos e lá estava o homem, meu pai, com cheiro de cigarros Hollywood, olhos cansados e ar de arrependimento. Calei-me. Calei por uma semana, por um mês, por anos. Voltei a colecionar cheiros e silêncios. Papai foi embora mais uma vez, pois ele não havia regressado. E eu, voltei a fumar.
Hoje, fumo como as personagens de Godard; nas manhãs de preguiça, nas madrugadas solitárias, nos dias de tensão e quando amo. Afastei-me do Hollywood e ensinei aos meus sentidos que cigarro tem cheiro de cinema francês e silêncio apaziguador.
A caixa das mais afastadas lembranças quase nunca é aberta, mas em dias como hoje onde o silêncio é cortado pelas cantigas de um grilo perdido nas esquinas desse apartamento, onde a cidade está vazia como um cemitério esquecido, lembro-me da vida em cheiros e vazios.
Descobri que amo em cheiros e silêncios.


terça-feira, 24 de maio de 2016

Uma vida vivida em vidas alheias

Na biblioteca, três mulheres. Duas jovens recém-casadas, mães de belos meninos de bochechas rosadas e cachos pulando da cabeça. Ambas brancas, de estatura mediana, vestem-se de preto, por causa da preocupação com isso e aquilo fora do lugar. Usam salto alto para arrebitar o nariz, estufar o peito, empinar a bunda e endireitar a coluna. A última, uma mulher bem mais velha, cabelos esvoaçados, com aspecto de palha seca, recém-tingidos de cor acaju – cor usada e abusada pela geração 60 -. Veste-se toda de branco, pois é Maio o mês de Maria mãe santíssima do seu senhor Jesus Cristo. Seu rosto me é agradável e sua voz soa como uma gralha velha, aposto que, como eu, fumou muito mais do que deveria quando tinha lá seus 20 e poucos anos. Vez em quando ela sorri para mim com seus olhos curiosos de gata velha e seu ar de tia-avó. Confesso que desenvolvi uma certa empatia por essa senhora, apesar de me irritar constantemente com seus tamancos de madeira fazendo toc-toc-toc-toc, durante quatro horas em seguida. De estatura baixa, a simpática senhora pede para suas companheiras de trabalho, de cinco em cinco minutos, que façam menos barulho, pois a única usuária - eu, no caso –, da biblioteca municipal Humberto de Campos, tenta com muito esforço  concentrar-se nas leituras aos montes espalhadas sobre a enorme mesa de madeira. Tento segurar o riso, pois essa constante reclamação torna-se deveras cômica, tomando como nota de rodapé, a simpática senhora é a que mais berra dentro da sala principal.
Elas andam para lá e para cá enquanto os livros não registrados empilham-se aos montes dentro das caixas mofadas. Confesso que desejo intimamente surrupiar cada livro dessa biblioteca e presentear meus conhecidos, e claro, os desconhecidos também. Como diz o queridíssimo Sérgio Sampaio em sua canção; “um livro de poesia na gaveta não adianta nada/lugar de poesia é na calçada”. Mas, aquieto-me em minha cadeira e espero ansiosamente pelo dia em que por obra do divino eu ganhe todos os livros encaixotados, por ser a única leitora dessa biblioteca.
Horas a fio passam e entre um texto e outro divirto-me com a prosa solta das três mulheres. O som que elas produzem, incrivelmente, lembra-me do som que brotava do meio do galinheiro que existia lá em mamãe quando eu era criança e morava no sítio. Claro, com todo o respeito.
Essas três mulheres não imaginam o quanto colorem minhas tardes e o quanto me banham com a nostalgia de uma conversa boba e despretensiosa. Sem essas ganas de desargumentar o outro pelo puro prazer da vaidade. Dali surge de tudo; receitas da bisavó, querelas cotidianas, lavagem de roupa suja da colega que trabalha no horário oposto e nunca faz nada – como se elas fizessem algo além de papear –, fofocas sobre a vizinha que chifrou o marido com fulano, sicrano e um tal de Zezinho.
Ao que parece me tornei observadora da vida dentro das abandonadas bibliotecas, o que muito me agrada, pois dentro das minhas – não sei quantas –, paredes do jeitosinho apartamento no centro da cidade, a vida bate e volta, como uma bola de tênis arremessada contra a parede incontáveis vezes. Naturalmente o braço cansa, a bola perde a velocidade, e, logo perde a força, tornando tudo dolorosamente estático, onde a vida vibra apenas no lado virtual.
Hoje, Vick, uma conhecida das redes, disse: - “O ser humano precisa de pouco para viver”.

Concordo. Eu, por exemplo, só preciso sentar em lugar público e observar a vida como ela é.  

Conta-Gotas


Recolho barulhos do mundo
e os guardo em pequenos potes de vidro.

Os dias chuvosos são belos.

Fora, água e som
Dentro, vazio e seco.

Posso ir lá fora e me molhar?

Não devo,
na certa ficarei resfriada
e de cama.

Não poderei assim, recolher barulhos
e colecionar silêncios.

O melhor, então
é contar gotas
e encontrar vida
dentro das traças.

segunda-feira, 23 de maio de 2016

Dos prazeres


Vivo em uma relação confusa com o Xico Sá e isso me deixa deveras agoniada. Sempre que o vejo em um desses vídeos soltos na internet, ou até mesmo na porcaria daquele programa, que jura falar sobre sexo sem tabu, algo entra em eterna ebulição dentro de mim. Ou quando depois de muita relutância abro mão do meu asco – de passagem –, e acabo devorando tudo que ele escreveu no curto espaço de tempo que o meu orgulho besta deixou.
A verdade é que o Xico é um puto. E os putos bolem comigo de forma que os santos e recatados nunca vão conseguir. São os piores tipos de macho… Argh. Macho. Chego a sentir vontade de escarrar em cima desse nome tão safado e comum. Que bosta, heim, Xico?!
O Xico é só mais um macho puto que eu reluto em não amar, mesmo amando. Mesmo sabendo que os putos são os piores, pois os putos sabem jogar e os putos não cansam quando não conseguem conquistar. Uma vez um macho bem puto me disse com fogo nos olhos, escorado na beira da pia dele, depois de um almoço com duas cervejas e um Belchior deixando tudo menos leve; sabe, nega, Lacan diz que tudo que você odeia é o que você é. Por isso que você me gosta assim, de um jeito agressivo e manso. Não tem coisa mais linda que uma mulher lutando contra sua própria natureza. Eu não presto e sei disso. E sei também que você sabe disso melhor que ninguém. Que foi nega? Tu sabe o tamanho dessa verdade e sabe que ela não cabe dentro das tuas esculhambações. Eu sou um puto. Bora lá. Diga. Mas tu me gosta porque tu sabe o que tu é e tu sabe o quanto te ama por dentro e por fora dos teus joguinhos de identificação, repulsa e carinho dentro das nossas maravilhosas trepadas.

Paff! Destruiu toda a minha máscara de papel machê. Me deu banho de saliva feito os gatos no cio e me deixou de quatro, como o Xico Sá me deixa. Tapou minha boca com um sopro e em meus olhos botou o fogo dos infernos. E eu, claro, da forma mais desdenhosa possível, coloquei fogo no meu cigarro, sentei com as pernas cruzadas, olhei de lado e soltei o meu sorriso mais puto.

É deveras angustiante e prazerosa a minha confusão entre amar e não amar os piores machos, os putos, os sem recomendações e os sem vergonha. De certa forma eu os entendo, até porque meu sorriso mais puto não nega a raiz. Por trás desse sorriso sempre tem o aviso numa placa gigante: Cuidado! Depois do sorriso a putaria rola solta e daí em diante não respondo por mim. O único problema numa relação com um macho puto, sendo da mesma natureza que a dele, é a insistência em nunca largar o osso e em nunca querer perder o jogo. O prazer de jogar com alguém a altura, queixo com queixo, peito estufado e sorriso matador, não é maior que o prazer de vencer um macho puto. Mas, para que isso aconteça, batalhas e mais batalhas são jogadas, ambos com todos os escudos do mundo erguidos sobre o peito, e, claro, com toda a putaria molhada que se possa existir entre um par de coxas cor de canela – a cor mais bela desse Sertão quente virado no inferno. Isso, para não mencionar todos os riscos de sair ferida feito rolinha baleada.
O rebuceteio é feio quando dois putos se amam numa cama pequena, numa dessas esquinas escuras ou na varanda de um prédio antigo, no centro de alguma dessas cidades maravilhosas daqui da Paraíba. Como diz Xico Sá, não há coisa mais linda – nesse caso –, que um macho puto ficando de boca aberta, salivando, e, encantado com a liberdade de um sorriso puto. Principalmente nesses tempos de cassação das carteirinhas da liberdade alheia, junto com o sindicato da não-liberdade sexual das mulheres livres e atuantes no campo da construção das mulheres do fim do mundo. A paudurescência da vaidade de ser amada por alguém cuja a putaria é maior ou igual à sua é o que há de mais belo numa manhã sem barricadas erguidas.
Então, viva a putaria dos putos mais putos desse mundinho cão!



Ah, quase ia esquecendo. Xico, tu é o macho mais puto do mundo. 



Abç